Mortes invisíveis

(e um pequeno manual de renascimento, para acompanhar)

Isadora Ferreira 1

A medida de confinamento, devido à pandemia, abre uma porta reveladora ao ensejar a percepção de aspectos abusivos ou decepcionantes nas relações. Estes são capazes de causar, no longo prazo, tanto dano e tanto luto quando a perda de um ente querido.

Podemos, então, falar sobre as pequenas mortes? As mortes invisíveis? Aquelas que só a gente percebe, quando, em uma fração de segundo dentro da gente, tudo muda? As mortes veladas. Eu não sei como é para você. Mas, para mim, que já enterrei várias pessoas muito importantes, as pequenas mortes invisíveis doem diferente. 

Talvez porque elas sejam privadas (e solitárias), silenciosas (e silenciadas), individuais (e profundas). Será que importa mapear o porquê disso, ao certo? Confesso que me interesso pouco pela razão precisa, ainda mais diante de um prato tão cheio de emoções. 

Quando se trata de morte invisível, a métrica é outra. A morte não é anunciada, o enterro não é palpável, o luto não é reconhecido, a reconstrução interna não é linear e a referência de base não existe. Como lidar, então, com algo sem nome que a gente percebe como consequência de um “antes confuso, permeado de sentimentos ambivalentes? 

Quando digo “algo” estou me referindo ao instante imediato que sucede à vergonha, à humilhação, ao medo e/ou à avalanche de culpa. São instantes, reconhecidos apenas por nós, que calamos por falta de opção. Infelizmente, fazemos isso sem perceber que cada silêncio é uma violência para conosco. 

VIOLÊNCIAS INVISÍVEIS

Para cada violência, uma estrela que brilha no nosso olhar morre. Mas, assim como na astronomia, até percebermos que ela parou de brilhar aqui, demora. E é por conta dessa defasagem que levamos meses, anos – às vezes décadas – para perceber o que aconteceu. Demoramos para entender, demoramos para chorar, demoramos para nos perdoar pelo tempo que passamos sem chorar. Demoramos para transformar. A verdade é que ficamos presos  àquele instante no tempo-espaço. O tempo pode até passar, mas nós ficamos congelados ali, sem sairmos do lugar.

A esse fenômeno, damos o nome de trauma. Tudo o que foi vivido, pensado, sentido e desencadeado a partir de um ápice biográfico é resumido em uma única palavra. Reconheço, obviamente, a importância e a utilidade da linguagem em nomear os acontecimentos. Sem esse primeiro passo, não há jornada.

Porém, quero ressaltar que precisamos urgentemente construir uma ponte dentro de nós; uma ponte de entendimento que vincula a palavra ao sentir. Sem o questionamento do que aquela violência, experiência traumática ou morte de estrela no olhar realmenteimplica, nossa humanidade e empatia vão deixar a desejar. Não haverá gentileza. Nem com o outro, nem com nós mesmos.

Enquanto as palavras forem reduzidas a uma combinação de letras vazias processadas pelo intelecto, elas serão apenas falsos recipientes, incapazes de fazerem caber dentro de si sentimentos tão complexos. 

Quando eu te conto que “aos seis anos, por um tempo, eu adormecia no silêncio que sucedia o som de metralhadoras silenciando o choro de mulheres e bebês durante a guerra civil no Haiti”, você sente algo para além do entendimento intelectual dessas palavras? E se eu te contar que, décadas depois, me tornei doula, educadora perinatal e intuo regularmente sinergias de aromaterapia para crianças?

Quando eu te conto que “um dia qualquer, quando eu tinha sete anos, vieram me buscar na escola para me contar que minha mãe tinha morrido em um acidente de carro”, você sente algo? E se eu te contar que, décadas depois, fui mãe em um parto domiciliar em êxtase (orgástico), onde eu mesma peguei a bebê enquanto a equipe aguardava na sala?

Quando eu te conto que “na adolescência, minha irmãzinha de seis meses passou por uma cirurgia de peito aberto e não resistiu após a terceira intervenção”, você sente algo? E se eu te contar que hoje uma parte do meu trabalho envolve estar a serviço da saúde integral das crianças? 

Estes são exemplos de lutos meus. Mas, você, que não necessariamente tenha perdido pessoas queridas, mas que tenha tido sua vida transtornada com a crise sanitária mundial ou que tenha sofrido o impacto de outras tragédias, pode, no seu tempo, precisar de um bálsamo.

Pois bem, quando a gente morre um pouquinho, sem ser por completo…. só nos resta renascer e encontrar um senso de propósito em tudo que aconteceu. De forma resumida, consigo ver dois caminhos para esse renascimento acontecer. O processo interno de transformação vai depender do grau de visibilidade e legitimação social do trauma-violência.

MANUAL DE RENASCIMENTO PARTE 1

Os exemplos citados acima referem-se ao primeiro caminho de renascimento, em que a visibilidade do trauma-violência é grande. Gosto de chamá-lo de “a arte de transformar excremento em fertilizante” (mas quem me conhece sabe que a versão raiz dessa frase é muito mais a minha cara). 


Essa transformação se dá em três passos: 

  1. Viver a coisa (o excremento)
  2. Nomear, estudar até crescer e perder o medo da coisa; e
  3. Reconhecer-se “especialista por experiência”, e então passar a fazer algo bom com a coisa (transformando o excremento em fertilizante)

Agora, vamos abordar os danos que as pequenas mortes invisíveis, advindas da violência cotidiana, acarretam a nossa integridade e dignidade. [ALERTA DE GATILHO] 

Esses danos ocorrem quando expressamos uma necessidade humana, como por exemplo:

Retomando, quando expressamos a necessidade humana de estabelecer uma relação saudável e passamos repetidamente por uma lavagem cerebral, isso fere a nossa dignidade. Em um instante, mesmo que seja confuso, sutil, inexplicável… Mesmo que seja invisível para qualquer outra pessoa, a gente sente na alma a perda de vitalidade.

O MANUAL DE RENASCIMENTO PARTE 2

Esse segundo tipo de morte, pequena e invisível, requer uma outra estratégia de renascimento que poderíamos chamar de “acerto de contas retroativo”.

Essa transformação também se dá em três passos, a serem repetidos conforme for necessário:

  1. Recapitular o dia com foco específico em discussões, criando uma ponte entre o que aconteceu (fato) e o sentimento gerado.
  2. Decretar e implementar uma mudança imediata de comportamento da sua parte (acerto de contas), mesmo que contra-intuitiva, que inviabilize a repetição da violência. (Lembre-se: traumas atuam como uma lavagem cerebral e a única referência confiável agora será observar o efeito que a mudança no seu comportamento produz); e
  3. No dia seguinte, recapitular o dia e também a semana anterior, e assim sucessivamente até conseguir mapear eventos do mês, do ano e além. Dessa forma você poderá continuar constatando situações que se repetem, seja no formato de causa e efeito (ex: sempre que acontece x, a consequência é y), como um paralelo (ex: algo que já aconteceu antes e está acontecendo de novo agora), e/ou enquanto futuro oposto (ex: quando uma experiência atual é completamente oposta ao que já foi vivido em circunstâncias semelhantes no passado). Esse último passo é a parte retroativa da estratégia.

CONSCIÊNCIA E TRAVESSIA

Sou eternamente grata às pontes internas que construí e sigo construindo, graças à filosofia que embasa o Sistema BodyTalk, assim como as sessões de BodyTalk que recebi de terapeutas competentes e dedicadas(os) ao longo de todos esses anos.

O autoconhecimento refina a nossa capacidade de olhar compassivamente para o outro e seus processos atemporais, como o do luto por exemplo. Considero um privilégio e uma honra acompanhar pessoas nessa jornada e desejo que você, que está lendo este texto, também consiga construir muitas pontes internas.

Torço para elas vinculem os desafios que você viveu no passado com o renascimento que você precisa para a sua individuação hoje. Ficam aqui os meus sinceros votos de que, depois da travessia, você possa parar para descansar e apreciar as águas do luto, que correm por baixo de todas essas pontes, dando a elas uma razão de ser e uma certa beleza colateral.

1 Depois de ter percorrido mais de 25 países e aprendido seis idiomas, Isadora Ferreira se descobriu apaixonada pelas diferenças de conteúdo interno que carregamos de acordo com a nossa cultura e bagagem pessoal. Atuando como palestrante, estrategista emocional e coordenadora de cursos de saúde e desenvolvimento pessoal há mais de 10 anos, realizando diversos projetos-chave em seu meio. Hoje, seu maior foco é promover o autoconhecimento, pois acredita que esta seja a grande chave mestre e organizadora da vida.

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